A distopia noir de Blade Runner + Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?
Às vezes, antes de dormir, vou até a varanda de meu
apartamento no 15º andar pra pensar, esta São Paulo ainda tão tarde acordada me
fascina, montanhas de concreto sendo sustentadas por luzes, faróis de carros
parecem flutuar em meio à escuridão, uma cidade que não para, esta deslumbrante
visão da humanidade me encanta e é quase como se eu conseguisse escutar Blade
Runner Blues sendo tocado por este céu sem estrelas, não é por menos que Blade
Runner é meu filme favorito, há tempos quero escrever sobre ele, mas é um filme
tão complexo e com tantos dilemas abordados que não saberia por onde começar,
lendo o livro (Androides sonham com ovelhas elétricas?) pela 2ª vez não me
contive e agora estou escrevendo tanto para simplificar o filme quanto para
abordar informações e curiosidades sobre esta ficção científica noir dos anos 80.
O que é um replicante? – Replicantes são um tipo de
androide, só que incrivelmente realísticos, são praticamente humanos criados,
mais fortes, inteligentes e ágeis, são criados por vários motivos desde para
satisfazer a luxúria de um homem até para ser um escravo na colônia em Marte,
os replicantes eram controláveis até lançarem os Nexus 6, que por serem humanos
demais por medida de segurança foi implementada uma data de validade de 4 anos,
o maior problema com os Nexus 6 é que eles começaram a ter sentimentos e
instinto de sobrevivência, por causa disso a maioria deles acabou fugindo ou passando a
viver nos subúrbios, os blade runners (ou caçadores de recompensa) são os que tem
o dever de capturá-los. O nome "Replicante" não é citado no livro, foi uma ideia do próprio roteirista David Peoples, que enquanto estudava réplicas celulares com seu filho acabou pensando nisso.
A narrativa do livro
é excelente, a maneira em que o mundo é apresentado é de se impressionar, uma
história que consegue te intrigar como poucas, mesmo sendo um livro sobre identidade, diversos outros temas são abordados, imperdível para qualquer um
que queira pensar um pouco sobre a vida, morte, sociedade, evolução,
religião, essência humana e quando foi que perdemos ela. Ainda tento entender
como foi que Dick conseguiu abordar tantos temas em 200 páginas, mas
inacreditável mesmo foi Blade Runner ter tratado destes mesmos temas em 1 hora
e 40 minutos de filme, lamentável que Dick tenha morrido algumas semanas antes
da estréia do filme que imortalizou sua obra para sempre.
Ridley Scott explicando uma cena para Harrison Ford |
Uma curiosidade é que estes takes externos não foram gravados por Ridley Scott e sim pelo Kubrick, que tinha estas cenas guardadas em seu acervo pessoal, originalmente deveriam ser de O Iluminado.
Atualmente é difícil de se encontrar a versão original de Blade Runner, mas se quiser ver como são as mudanças de roteiro citadas, neste link (http://www.trussel.com/bladerun.htm) se encontra o roteiro modificado da primeira versão, é curto e interessante, vale a pena lê-lo.
Agora vamos falar do filme em si: Bom deixar claro que a versão que será analisada é a de diretor, apesar de serem mudanças sutis de uma versão pra outra pode ser que eu cite algo que não esteja presente em outros DVDs. Recomendo que assistam o filme antes de lerem abaixo pois pretendo dissecá-lo sem me importar muito com spoilers,
O filme começa nos situando do que está acontecendo: "No inicio do século XXI, A Tyrell Corporation avançou na evolução de um androide para a fase Nexus - Um ser idêntico aos humanos conhecido como replicante - Os replicantes Nexus 6 eram mais fortes, ágeis e, pelo menos, tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram.
Os replicantes eram usados fora da terra , na arriscada exploração e colonização de outros planetas. Após uma revolta de uma equipe de combate Nexus 6, em uma dessas colônias, os replicantes foram declarados ilegais na terra - sob pena de morte.
Brigadas especiais da polícia - as unidades Blade Runner - tinham ordem para atirar e matar quando detectassem um replicante.
Não se chamava de execução, e sim de aposentadoria."
"Los Angeles, 2019"
Acho que um bom primeiro ponto para tocar seria a direção, Ridley Scott estava em seu ápice, e acabou criando uma Los Angeles bonita e feia ao mesmo tempo, se por um lado a destruição e o caos estão presentes junto com prédios decadentes e um futuro triste, por outro ver aqueles carros voadores e naves coloridas atravessando painéis gigantescos é uma sensação sem igual, ainda mais com aquelas músicas lindas. Cinema Noir é aquele cinema preto e branco policial dos anos 50, ele é uma mistura do expressionismo alemão e do neo-realismo italiano sendo inspirado na literatura clássica investigativa, o conceito de Noir é apresentar passo a passo uma investigação criando uma atmosfera calma e sombria, onde as a iluminação serve para expressar a tensão da cena, um exemplo:
Na teoria Blade Runner é ultimo filme noir, apesar de colorido e futurista o filme é construído aos moldes de um noir, outro ponto a se elogiar, tanto as cenas em espaço confinado quanto os takes abertos costumam usar a iluminação a favor da cena, o que de fato cria todo um clima investigativo e sombrio, até triste em alguns momentos, que é o que Scott queria apresentar, ao colocar Blade Runner em preto e branco é possível ver a similaridade:
Frame de Blade Runner |
Ser uma ficção cientifica futurista e apresentar um clima clássico é totalmente condizente com a obra que fala sobre perda da identidade, é extremamente inteligente a maneira como isso é apresentado em tela, futuro noir, pessoas desumanizadas, e maquinas humanizadas, aonde está a identidade? Nos perguntamos isso quando até mesmo o novo mundo, Estados Unidos, tão singular quanto a sua cultura, está "invadido" por outros povos, estrangeiros aos montes e dezenas de línguas diferentes são ditas ao decorrer do filme, como que 2019 pode parecer tanto com os anos 50 e ser algo plausível? Em Blade Runner parece que o próprio mundo sofreu uma crise de identidade. Ao nos apresentar a este futuro decadente a fotografia e direção conseguem expressar o quão errado estamos fazendo ao planeta, nos mostrar que estamos sacrificando a natureza sem precisar necessariamente ter um diálogo explicando isso. Apenas por sua arte.
São Paulo Neo-noir |
Os efeitos especiais são ótimos, apesar do filme ter sido feito há mais de 30 anos, foram feitos inteiramente com maquetes e efeitos práticos, o que funcionou bem, se o filme tem um futuro que nunca será datado seus efeitos também não, as únicas coisas que são de fato efeitos especiais aparecem de maneira sútil no fundo escuro e na chuva, inclusive a equipe teve um grande problema em criar maquetes tão grandes a ponto de parecerem cidades, produzir prédio a prédio engenhosamente deu muito trabalho, em um frame inclusive é possível ver ao fundo uma millennium falcon escondida para parecer dois prédios. Por estes motivos que o filme na época custou uma fortuna, foram 30 milhões de dólares, na época era muito para um filme, e isto explica o desespero dos produtores para o filme ser sucesso de bilheteria.
Rutger Hauer |
Vangelis |
Pensando bem, Blade Runner é um filme sobre humanidade, onde todos buscam se completarem, Deckard busca os replicante e a si próprio. Enquanto persegue o amor de Rachel, que tenta encontrar razão na sua inexistência enquanto os outros Nexus 6 procuram vida, O filmes na verdade tenta mostrar a dificuldade de se identificar a humanidade, não no sentido biológico, biologicamente os replicantes são seres materiais, mas retirando o sentido biológico e se concentrando no sentido de humanidade como uma essência (exemplo quando dizemos que uma pessoa é mais humana que outra), isso se torna mais complexo, se somos humanos por critérios comportamentais o que nos diferencia de maquinas quando estas tem um mesmo comportamento? Quando maquinas sentem mais do que nós, podemos classificá-las como mais humanas? Se estamos nos baseando em humanidade, afinal, Deckard estava tentando matar Roy quando este o poupou da morte, quem foi mais "humano"?
Parabéns Roy, você foi digno de consideração moral como o humano que desejava ser.
Enquanto os androides se mostram cada vez mais humanos deixa de ser ético o trabalho de Deckard, e ele tentando entender isso (apesar de ser pouco explorado no filme) é a glória do livro. "Aposentar" os replicantes se torna, de fato, matá-los, e os seres puramente artificiais não fariam isto, exceção para falar com o criador deles, mas pensando bem, quantos você mataria para falar com o seu criador? Parece não ser uma questão tão longe de nossa realidade.
Se Deckard é ou não replicante? É importante você se perguntar isso só após assistir o filme e entendê-lo por inteiro, mas se querem respostas fáceis, sim, ele é um replicante. Existem diversas cenas que dão isso a entender, a mais famosa é a que seus olhos ficam vermelhos, como acontece com os outros replicantes. Sem contar que no meio do filme ele sonha com um unicórnio e no final seu parceiro o dá um origame de unicórnio, como ele sabia? Por que provavelmente foi um sonho simulado por programação. Esse unicórnio inclusive está muito presente na divulgação do filme, estampa a edição especial de 30 anos.
No final Blade Runner é sobre o valor da vida. A busca por razão existencial de Deckard e por vida de Roy são conceitos filosóficos que devem ser discutidos em nossa breve passagem, no decorrer destas perseguições descobrimos o valor experiencial de existir.
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